03/03/2011 - 16:29 - Informe CIMI nº 953
Na tarde desta quarta-feira, 2 de março, o juiz Frederico Valdez Pereira, da Vara Federal de Caçador, em Santa Catarina, concedeu liminar de reintegração de posse à empresa Renar Maçãs S.A. contra a comunidade indígena Kaingang que reivindica a demarcação de suas terras ancestrais, atualmente tituladas em nome desta empresa, no município de Fraiburgo. As 13 famílias Kaingang, totalizando cerca de 60 pessoas, terão que desocupar suas terras originárias, nas quais foram identificados cinco sítios arqueológicos – quatro casas subterrâneas e um cemitério tradicional.
Trata-se de episódio inédito, no qual tanto a Fundação Nacional do Índio (Funai) - através da coordenação regional em Chapecó e da Procuradoria Federal da Advocacia Geral da União (AGU) – como o próprio procurador da República atuando no caso, ao invés de contestar regularmente a ação, aderem à argumentação baseada na posse civil desenvolvida pelos advogados da empresa Renar, manifestando-se favoráveis ao despejo da comunidade Kaingang, em detrimento da defesa dos direitos dos indígenas.
Pelo que se tem notícia, é a primeira vez que Funai e MPF concordam em não defender os direitos constitucionais de um povo indígena às suas terras reivindicadas como tradicionais, quando poderiam ter ação favorável à garantia dos direitos indígenas com base em informações obtidas diretamente do povo, mas também de especialistas em Arqueologia e Antropologia Social, História e Geografia, que elaboraram parecer e relatório que subsidiam a memória Kaingang. O território reconhecidamente de tradicionalidade Kaingang é reivindicado desde março de 2010, quando famílias deste povo, descendentes de liderança que vivera na área, por razões de ordem cultural, decidiram voltar a se estabelecer ao local.
Os fatos
Desde que a empresa Renar Maçãs S.A. ingressou com ação de reintegração de posse (autos n° 5000242-68.2010.404.7211) na Justiça Federal de Caçador, o juiz Federal solicitou uma audiência de conciliação. Na audiência realizada no dia 24 de junho de 2010, tanto o MPF/SC como a Funai tentaram convencer os indígenas a aceitar sua transferência temporária para a terra do Povo Xokleng, localizada no município de Calmon, a mais de 150 km da terra reivindicada. Diante da negativa dos Kaingang, o representante da Funai teria convencido os indígenas de que se tratava apenas de uma “estratégia para ganhar tempo”. Na referida audiência, Funai e Renar Maçãs se comprometeram a construir casas para os indígenas na nova terra, e o processo foi suspenso por 60 dias para que estas medidas fossem efetivadas.
O cacique João Eufrásio, presente à audiência, estava visivelmente intimidado, não estando excluída a possibilidade de seu entendimento dos fatos e das consequências jurídicas dos procedimentos judiciais ser limitado, uma vez que o português é sua segunda língua e não houve perícia antropológica para aferir seu grau de compreensão e o de sua comunidade em relação à situação. Posteriormente, o representante da Funai teria explicado que o acordo firmado configurava uma “estratégia para ganhar tempo”.
Passados os prazos estipulados, nem Funai e nem MPF/SC se movimentaram no sentido de defender a ocupação e posse indígena, pelo contrário, a todo instante insistiram na transferência. Os Kaingang solicitaram a estudiosos e especialistas pareceres históricos, arqueológicos e antropológicos sobre o local ocupado. Dois laudos foram produzidos: o primeiro, de caráter arqueológico, comprovou a imemorialidade da ocupação Kaingang naquele local, inclusive os sítios arqueológicos existentes encontram-se registrados no IPHAN/SC; o segundo, de caráter etno-histórico, atestou que a ocupação Kaingang é parte da mobilidade tradicional desse grupo indígena e que as terras ocupadas fazem parte do território deste povo.
Foi dado ciência deste material contendo fortes elementos de se tratar de uma terra tradicionalmente ocupada, conforme o art. 231 da Constituição Federal, tanto ao MPF/SC, como à Funai em Chapecó e em Brasília. Entretanto, e apesar de o MPF/SC afirmar que adotaria “todas as medidas cabíveis” para “acelerar o processo de reconhecimento”, “inclusive processo judicial se preciso”, pouco ou nada no sentido de garantir os direitos originários do grupo foi feito.
Antes mesmo de o juiz proferir a decisão liminar ontem, a Funai - ao invés de contestar a ação como lhe foi determinado no dia 22, atuando ativa e constitucionalmente pela defesa dos direitos indígenas - teria afirmado na última sexta-feira (25) aos indígenas que o juiz já havia determinado a desocupação da área. O MPF/SC, informado da discordância do grupo pelos próprios indígenas e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em vista do encaminhamento e manifestação da Funai desrespeitando o povo Kaingang, manifestou-se entretanto “pelo julgamento do mérito da ação e com a reintegração de posse à autora”.
Em Fraiburgo, os Kaingang encontram-se diante de um caso emblemático. Nem Funai, nem MPF/SC, que constitucionalmente têm por obrigação a defesa dos povos indígenas e de seus direitos, agem em consequência, frente à negativa dos Kaingang de ir para a área do povo Xokleng, afirmação esta que não conseguiram expressar na audiência de conciliação, por motivos subjetivos e inerentes à sua cultura. “Nada foi feito para garantir a permanência dos indígenas em seu território tradicional, direito garantido na Constituição Federal. Tão pouco, ouviram a comunidade em relação ao que queriam de fato, respeitando seu modo cultural de se expressar. E isso acontece justamente com os órgãos que têm por dever trabalhar em prol dos direitos dos povos indígenas”, afirmou Clóvis Antônio Brighenti, membro do Cimi.
Ambos os órgãos incumbidos da defesa dos direitos indígenas não informaram o juízo da existência de documentos demonstrando a legitimidade da ocupação indígena. Apesar de não ter providenciado condições materiais para realocação do grupo, como acordado em juízo, a Funai, concretamente apenas se propôs a abandonar a comunidade ao tempo, longe das terras reivindicadas.
O cacique João Eufrásio mostrou-se indignado, à maneira Kaingang, frente à conduta da Funai e MPF/SC, uma vez que ele entregara os dois pareceres técnicos em mãos ao procurador da República, no último dia 10, evidenciando que as terras reivindicadas são de ocupação indígena. Na ocasião, foi reafirmado pelo cacique que a comunidade não desejava deixar o local. “Estamos chocados e preocupados com a atuação desses órgãos, que ao invés de dar apoio para o índio, age contra, pedindo nossa saída da terra de nossos ancestrais”, afirmou.
A comunidade indígena reitera sua reivindicação para que a Funai crie um Grupo de Trabalho (GT) multidisciplinar para proceder aos estudos de identificação e delimitação da área na forma do Decreto 1.775/96, ao mesmo tempo em que exige o cumprimento das obrigações constitucionais das instituições que devem defender seus direitos e interesses, garantindo sua permanência em suas terras tradicionais em Fraiburgo. “Vamos desocupar a área, pois é uma determinação da Justiça, e agora pressionar a Funai para que crie esse GT e trabalhe a nosso favor e não contra nós”, disse João Eufrásio.
Ainda de acordo com o cacique, a comunidade ficará, temporariamente, em um pequeno espaço de terra, cerca de 5 hectares, cedido por um conhecido, enquanto aguardam da Funai e MPF/SC ações efetivas em defesa do direito à posse da terra tradicional do povo. “Estamos muito apreensivos, pois a qualquer momento pode chegar a Polícia Federal para nos retirar da área. Ficaremos na terra de um conhecido por enquanto, mas nem mesmo veículo para transportar nossas coisas para a área conseguimos. Estamos aguardando resposta da prefeitura”, declarou João Eufrásio.
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